relato autobiográfico e memória de infância* (primeiro e único)
aquele retrato ampliado, uma fotografia a preto e branco poderosa, com uma moldura preta e um vidro pesado, esteve encafuado no armário durante muito tempo. tempo demais, parece-me tão claro agora. dou por mim a olhar para a criança retratada como se não fosse eu e pergunto-me muitas vezes onde ela está, onde foi que ela se perdeu, qual o momento exacto em que tudo se estilhaçou. ela não me responde, embora sinta que o seu olhar me procura, como uma alice do outro lado do espelho e que me pergunta com uma curiosidade grave: és feliz? agora, como numa espécie de vingança secreta, o retrato está pendurado ao lado da porta da minha casa. é o último objecto familiar que vejo antes de sair de casa. e o primeiro quando entro. para que não me esqueça, nunca, de quem sou.
não devo ter mais que cinco, seis anos, com o meu cabelo ainda liso, à garçonne, o meu boné de bombazina, a minha t-shirt adorada do sandokan, que usei até muito depois de o vermelho escuro estar desbotado e feio. no outro dia um amigo comentou: "é tão bonita, esta foto. parece francesa". e ficou ali um bom bocado a olhar para a criança adulta com olhos tristes.
* título roubado ao azia, a quem dedico este post