quinta-feira, junho 15, 2006

diários da aldeia

sou filha de faro. ali nasci, ali vivi a maior parte da minha vida, ali trabalho e ali estudo. quando chegou a hora de sair de casa dos pais, escolhi pechão por mera contigência: encontrei uma casa muito mais barata que na cidade. há 6 anos que aqui vivo e ainda não criei nenhum laço afectivo com esta aldeia. pechão é uma terra de ninguém, a meio caminho entre faro e olhão. para mim, não passa do lugar onde venho dormir ou onde, como agora, passo os dias em casa a tentar fazer o último semestre do curso de ciências da comunicação, a marrar obstinadamente ou, a teclar furiosamente, na ânsia de me ver livre de tantos papéis e de tantas ideias: estou cansada de pensar.

é uma aldeia relativamente calma. não fosse a obra mesmo ao lado do prédio onde vivo, teriam sido duas semanas perfeitas de reclusão e concentração. a obra está pejada de africanos e de europeus de leste. cantam e discutem muito. já me estou a habituar às suas lenga-lengas. hoje é feriado, o tempo está cinzento e a aldeia parece quase fantasmagórica. sim, ouvem-se pássaros, como o agente imobiliário fez questão de repetir vezes sem conta. pássaros inofensivos, de dia e de noite, mochos arrepiantes, cães que uivam e ladram assustados e assustadores. às vezes os seus latidos juntam-se, numa matilha dispersa por vários quilómetros quadrados, parecem milhares e a sinfonia é insuportável. há gatos que miam freneticamente, do meio do nada. é uma fauna impressionante.

as pessoas são rotineiras e observadoras. olham-me como se dissessem: não és filha desta terra. e não sou. não gosto do presidente da junta. não gosto do taxista que uma vez me disse, num tom cúmplice de intenção pretensiosamente amiga, enquanto eu bebia uma imperial no café ruca: "olhe, o seu marido já chegou". não gosto de certos velhos ressabiados, que rondam por aí à caça de novidades e mexericos. não gosto da mesquinhez desta gente, absorvida nas suas vidinhas vazias. em contrapartida, gosto do homem do talho, opositor independente do presidente da junta. fala muito alto e é aguerrido. gosto daquela raiva que lhe nasce nos dentes. gosto das pessoas que estão à frente do café ruca: são cordiais e genuinamente simpáticas. gosto de um homem grande, que o frequenta, construtor civil e apoiante do homem do talho. é incisivo e falador. sinto-me parte desta pequena minoria conspiratória, vigilante e crítica. mas não me empenho mais por mera indolência.

como todas as aldeias, pechão também tem os seus maluquinhos. há o zé das uvas, que faça sol ou faça chva, pica o ponto na mercearia em frente do local onde vende lenha, de mini na mão. de manhã, quando vou para o trabalho ele está lá, sentado no poial a ver os carros que passam. ao fim do dia, continua no mesmo sítio, mini na mão. há um homem negro errante, entrajado com muita roupa, seja verão ou inverno: fala sozinho, sempre num tom zangado e daquela ladainha consigo perceber uma única palavra "macaco", que repete aos gritos, numa discussão solitária. por fim, há um homem que me perturba especialmente: deve andar na casa dos quarenta, andar robotizado e olhar distante e perturbado. tem as pernas arcadas e não sossega um minuto: anda de um lado para o outro a cravar cigarros, num limbo frenético. muitas vezes, quando saio do prédio está deitado nos degraus da farmácia, em pose fetal, a saborear os raios de sol, como um gato preguiçoso. hoje fiquei a saber que se chama martim e que em tempos foi um conhecido jogador de futebol no união de leiria.

fiz uma pausa no último trabalho que comecei hoje e que tenho que entregar amanhã: é para a disciplina de jornalismo televisivo. talvez por ser o último, ando a engonhar e a empaliar: não me apetece fazer mais nada. por exaustão e saturação decidi ir beber um cafézinho na tal pastelaria ruca e fumar uma bela cigarrada. era a hora ideal: hora de almoço. café vazio. apenas a simpática funcionária e um homem jovem, meio desdentado, que bebia uma mini ao balcão. os cafés aqui são muito masculinos e muitas vezes aborrecem-me os olhares e comentários velados. senti-me longamente observada pelo homem ao balcão. pedi um café e sentei-me, entretida a ver os inevitavéis diários do mundial. um grupo histérico de imigrantes portugueses na alemanha gritava "portugal" com um entusiamo teatral.

quando puxo de um cigarro, o tal martim passa à porta do café e entra meio trôpego e hipnotizado pelo apelo irrestível de mais um cigarrinho. é a primeira vez que me pede um e confesso que já tinha ponderado se, um dia isto acontecesse, haveria ou não de aceder ao seu pedido. curiosamente, reagi de imediato abrindo o maço, pensando que este deveria ser o único prazer deste pobre diabo. entretida neste pensamento e com o cigarro meio fora do maço, sou interrompida pelos alertas da moça do café e do homem ao balcão: "não dê cigarros ao homem, que lhe faz mal. a mãe dele não quer". estupefacta, olho para os meus interlocutores e para o louco, alternadamente, uma vez após outra e em silêncio, forçando o confronto entre os dois pólos. martim reage furiosamente: "não posso fumar porquê??!!". finalmente articulo: "não sei o que faça". o homem ao balcão acaba por ceder: "se quiser, dê, mas a mãe dele não quer". dou-lhe o cigarro e acendo-o. martim vai-se embora, cabisbaixo e indiferente. comecei o inevitável diálogo, que se impunha: "fumar faz mal a toda a gente, mas se calhar é o único prazer deste probre diabo!". a moça não se manifestava, fazendo apenas uns trejeitos faciais de desaprovação. o homem ao balcão repetiu que lhe fazia mal e acrescentou: "bom já ele não é...". aproveitei para perguntar: "este senhor é doente mental, não é?". foi aí que fiquei a saber do seu passado áureo de futebolista e que o seu estado actual se deve ao consumo de drogas e, posteriormente, a um violento acidente de viação. o homem grande, construtor civil, entra no café e apanha a conversa a meio. acaba por ficar do meu lado, pois acha "que do mal o menos, sempre se entretém com um cigarrinho".

desabou uma chuvada violenta e já cheira a terra molhada. penso com agrado que já não preciso lavar o carro. ao longe oiço o irritante jingle da carrinha da family frost. onde andará o martim?

quarta-feira, junho 14, 2006

bandas sonoras da vida

antes de saíres para o trabalho arrumas à pressa o dia anterior

para debaixo da cama

guardas o coração ainda adormecido

bem dentro do teu corpo

e esqueces essa canção que já não passa na rádio

mas que vive secretamente dentro de ti

fechas a porta à chave com duas voltas e sais


fragmento de monotone, 2006, a naifa - poema de joão miguel queirós

terça-feira, junho 06, 2006

rewind

janeiro e junho são os meses mais cruéis.
(e despachar um semestre em duas semanas tem muito que se lhe diga.)