sábado, janeiro 28, 2006

palavras odiadas [2]

" criado. precisa-se, com 25 anos, muito humilde...

(...) agora, aqui estou na cama, deitado ao comprido, a odiar à minha vontade essa palavra vil... sim, essa palavra vil que - mascarem-na como quiserem, com infinito, com anjos, com 'pequenez do homem diante das estrelas', com rojos de santos orgulhosos - no fundo significa, apenas e sempre, falta de carácter, moleza de ânimo, capacho, erva submissa, áulico curvado...

criado humilde, precisa-se?!...

por mais que me esforce não consigo compreender como há bichos humanos que só se comprazem em lidar com animais de músculos de cera e colunas vertebrais de arame, sem personalidade, sem cor, sem reacções, - apenas lambe-botas com a alma cheia de ecos dos nossos sins. qualquer coisa de semelhante à água que se adapta molemente a todos os feitios e mesmo quando endurece, quando gela, ainda conserva a forma da última vasilha.

humilde?... criado humilde, precisa-se?!...

ah! se dispusesse de dinheiro e de coragem para ter criado, com que prazer publicaria amanhã, na primeira página do diário de notícias, este anúncio enorme como um berro:

criado. orgulhoso como um lorde, de coluna vertebral de aço, que não consinta que o tratem por tu, nem pertença aos 'josés'. precisa-se.

humilde?!...
que vontade de partir caras!"

(fragmento do conto insónia, josé gomes ferreira, in o mundo dos outros: histórias e vagabundagens, 1950)